quarta-feira, 8 de maio de 2019

Revista Bioética 2018; 26 (1)

Combate à violência contra crianças e adolescentes: desafio para a sociedade brasileira
A ideia de infância vem variando ao longo dos séculos e entre culturas. Conforme Narodowski, a infância é fenômeno histórico e não meramente natural, e, no Ocidente, suas características, precípuas podem ser classificadas como heteronomia, dependência e obediência ao adulto em troca de proteção. Essa perspectiva vai ao encontro da proposição de Philippe Ariès, para quem é preciso aceitar que a infância, tal qual é entendida hoje, resulta inexistente antes do século XVI. A afirmação de Ariès permite compreender que, no decurso da história e, inclusive, na pré-história, a ideia de criança ou concepção de infância não existia.
No Brasil, a percepção e o tratamento da criança durante o período colonial não foi muito diferente, pois a sociedade escravista reforçou sobremaneira a violência das relações. Del Priori relata que, no século XIX, 4% dos escravos levados ao comércio no mercado do Cais do Valongo, na então capital do país, Rio de Janeiro, eram crianças, das quais apenas a terça parte sobrevivia até os 10 anos. Muitas delas eram obrigadas a trabalhar a partir dos quatro anos de idade. De fato, até o final do século XIX o trabalho infantil continua sendo visto pelas camadas subalternas como "a melhor escola".
Atualmente, nossa perspectiva a respeito da infância se alterou de maneira radical. No século XX essa noção se consolidou universalmente, apoiada, inclusive, em documentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu item 2 assevera:  A maternidade e a infância tem direito  a ajuda e  a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma proteção social. Ao longo da década de 1960 e seguintes, diferentes documentos internacionais também registraram a necessidade de atender às necessidades de saúde, educacionais, físicas, intelectuais e emocionais de crianças e jovens.
Revisão sistemática publicada em 2016 mostra que no Brasil a negligência foi a forma de violência mais frequente, perfazendo cerca de dois terços do total de registros e predominando em crianças menores de 1 ano, sendo a violência física prevalente em crianças maiores. O provável autor da violência foi um familiar da criança em dois terços dos eventos, sendo a mulher a mais frequente contra menores de 1 ano e o homem contra crianças de 6 a 9 anos.
Esses números preocupantes indicam que o combate à violência em nossa sociedade é tarefa que ainda precisamos encarar. A violência contra a criança é a primeira manifestação de fenômeno generalizado que se abate contra adolescentes, jovens, idosos, portadores de deficiência, mulheres, povos indígenas, população negra, migrantes, pessoas que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros, entre outros, especialmente se pertencem também a segmentos sociais mais pobres. Essa marca intergeracional que transporta a violência para o futuro deve ser extirpada o quanto antes para que possamos almejar uma sociedade verdadeiramente autônoma e emancipada. Para isso, nunca é demais lembrar, é indispensável promover sempre a educação ampla, geral e irrestrita para todas as cidadãs e cidadãos brasileiros. Uma educação baseada na ética e na cidadania. Só assim se poderá alcançar justiça.

Alguns artigos:
Considerações médicas, éticas e jurídicas sobre decisões de fim de vida em pacientes pediátricos
Bioética no acolhimento a dependentes de drogas psicoativas em comunidades terapêuticas
Experiências, necessidades e expectativas de pessoas com diabetes mellitus
Processos judiciais para aquisição de bomba de insulina em Ribeirão Preto

Disponível em: Revista Bioética 2018; 26 (1)

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