segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Revista Bioética 2020; 28 (2)

 Novo ciclo, novos rumos, novas abordagens  Brasil.  A partir deste exemplar, a Revista Bioética inicia novo ciclo, com a missão de transformar-se em referência não somente na América Latina, mas em todo o mundo. Para isto, o periódico conta agora com a inestimável colaboração do novo editor científico, professor doutor Rui Nunes, passando também a integrar a equipe a professora doutora Natália Oliva Teles. 

A Revista Bioética é hoje referência incontestável em todos os países onde o português e o espanhol predominam. Da América Latina à Europa, atravessando todos os outros continentes, este periódico tem abordado ao longo dos anos os mais diferentes temas da bioética contemporânea, com incursões no direito e na filosofia, mas sempre de acordo com princípios éticos universais – nomeadamente os que constam na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas 1 em 1948, e na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura 2 , que desde 2005 enquadra a bioética no direito internacional. 

Uma característica fundamental da publicação é o respeito pela tolerância e espírito crítico dos investigadores. Ou seja, apesar de existirem referenciais axiológicos globais – como o valor intrínseco da pessoa humana e sua dignidade, a garantia de justiça e equidade, a promoção da beneficência individual e da solidariedade pública –, os investigadores têm amplo campo de manobra, limitado somente pelo rigor técnico exigível a uma revista desta natureza. 

Mas existe hoje, como nunca, a oportunidade de colocar esta revista em patamar ainda mais diferenciado de promoção de uma verdadeira bioética científica, pois a evolução geopolítica global abriu espaço a um mundo multicultural e a novas centralidades no domínio da ciência e do conhecimento. De fato, a diminuição da influência do pensamento anglo-saxão nos desígnios da humanidade origina novas formas de ver o mundo relacionadas a culturas específicas de diferentes povos. Acreditamos que este vazio relativo pode e deve ser ocupado por uma bioética mais preocupada com o dever coletivo da humanidade e com a solidariedade entre as pessoas, sobretudo as mais vulneráveis. 

Este momento de pandemia pelo coronavírus demonstra bem que os direitos individuais devem ser alinhados com o interesse público. Ou seja, é possível respeitar a pessoa doente e seus direitos básicos e, simultaneamente, tomar medidas de saúde pública de interesse coletivo. E mais ainda, porque o mundo se depara com importantes desafios, sendo a pandemia apenas um dos mais visíveis. As alterações climáticas, por exemplo, evidenciam a importância de uma ética global para resolver problemas globais. 

A Revista Bioética dispõe de patrimônio intelectual de tal magnitude, fruto do rigor e profissionalismo verificados ao longo dos anos, que pode vir a destacar-se no cenário global como um dos grandes periódicos em escala internacional. Para isso é necessário divulgar esta revista em sociedades e culturas distintas, o que implica também reforçar o Corpo Editorial. E, naturalmente, aprimorar seu conteúdo científico que, já sendo de alto nível, irá ombrear seguramente com os mais elevados padrões internacionais. 200 Rev. bioét. (Impr.). 2020; 28 (2): 199-201 http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422020282000 Editorial Editorial 

Neste número apresentam-se temáticas variadas que permitem refletir acerca de pontos importantes, como a dignidade humana, os princípios de equidade e justiça, a interação entre bioética, saúde e trabalho, a relação médico-paciente, a vulnerabilidade do doente e sua dor e sofrimento na perspectiva do modelo de cuidado da saúde. 

As diversas ideias acerca da pessoa humana correspondem a determinadas épocas e sociedades. De acordo com o conceito aristotélico, a existência do homem político pressupõe sua relação com outros homens em determinado espaço comum, a cidade 3 . Ali se reúnem pessoas em comunidade, visando uma vida feliz. Já no período renascentista, a definição de pessoa humana recebeu novo atributo: o da dignidade. Este conceito alicerçou a luta pelos direitos da pessoa, principalmente os de ordem política, que tomou vulto nos séculos seguintes. A análise da dignidade humana, de suas controvérsias e possíveis soluções se dá pela relação com os direitos humanos, com os avanços biotecnológicos, com o respeito, a solidariedade e o exercício da cidadania, considerando os direitos pessoais e sociais, além da capacidade de manter padrões e princípios 4 . 

Igualmente dignos de nota, igualdade, equidade e justiça são contemplados no artigo 10 da DUBDH2 , o que contextualiza a importância das questões sociais em políticas governamentais, no que concerne às garantias de acesso à saúde pública e ao desenvolvimento de potencialidades que diminuam as desigualdades, em busca de uma sociedade mais justa. 

Nesta edição são também avaliadas as regulações das pesquisas biomédicas no Chile em respeito às normativas éticas internacionais existentes sobre o tema, em especial a Declaração de Helsinki5 e as Diretrizes éticas internacionais para pesquisas relacionadas a saúde envolvendo seres humanos, do Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas6 . Outro tema relevante é a integração entre bioética, saúde e trabalho, envolvendo seus aspectos morais e jurídicos. 

Mesmo com o grande desenvolvimento tecnológico atualmente observado, persistem grandes deficiências nas relações humanas, que influem diretamente no cuidar da saúde. Nesse sentido, um dos estudos desta edição analisa a relação médico-paciente segundo o pensamento do filósofo Emmanuel Levinas, e outro investiga a subjetividade da dor, que seria mais bem tratada quando a equipe interdisciplinar consegue entender e avaliar os direitos humanos dos pacientes. 

Considerando finalmente o interesse da comunidade científica no campo das neurociências, apresenta-se pertinente artigo que as relaciona à neuroética. A preocupação com questões éticas nas ciências cognitivas é antiga, remontando às tradições filosóficas e científicas que originalmente procuravam compreender a relação entre cérebro e comportamento. No caso, os pesquisadores contrapõem a visão computacional da cognição com o enfoque enativo, o qual defende que o conhecimento é produto da influência do ambiente sobre o corpo. Estes e outros temas relevantes estão à disposição de todos nesta edição, e esperamos que desfrutem de uma proveitosa leitura. 

Por fim, em nome do Conselho Federal de Medicina (CFM), agradecemos aos novos editores por aceitarem este desafio de ampliar a internacionalização do periódico. Registramos também nosso agradecimento ao Conselheiro Federal doutor José Hiran da Silva Gallo, por ser grande impulsionador da bioética no Brasil, e aos que ao longo dos anos se dedicaram a esta revista. Os editores agradecem igualmente ao próprio CFM, o qual zela pela estrutura que permite a publicação da Revista Bioética, bem como a toda a equipe que com enorme esforço e dedicação torna esta missão possível. 201 http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422020282000 Rev. bioét. (Impr.). 2020; 28 (2): 199-201 Temos certeza de que juntos faremos com que esta revista científica brilhe no cenário internacional. Este sonho pode se transformar em realidade se partirmos do pressuposto de que todos somos essenciais à sua concretização, e de que vale a pena construirmos uma bioética que vá ao encontro da visão universalista de Van Rensselaer Potter 7 : verdadeira ponte para um futuro melhor.

Alguns artigos:

Mortalidade infantil evitável em Minas Gerais: perfil epidemiológico e espacial

Infância e práticas alimentares: estudo bioético sobre vulnerabilidade e risco

Pressões sociais e reações de adolescentes usuários de drogas em tratamento ambulatorial

Atitudes de médicos e estudantes de medicina com pacientes com ideação suicida

Disponível em: Revista Bioética 2020; 28 (2)



Revista Bioética 2020; 28 (1)




Medicina e sociedade.  Apesar de as primeiras preocupações com a bioética terem ocorrido após as grandes guerras, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, suas pesquisas tomaram vulto a partir dos anos 1970. Em tempos de mudanças sociais, o principialismo bioético tem muito a contribuir para a ciência e a área de humanidades 1 . A bioética surge a partir da tecnicização da medicina, com seus avanços científicos e do poder sobre vida e morte, saúde e doença, qualidade de vida e sofrimento, além das mudanças socioculturais vivenciadas no século XX. O pesquisador americano Van Rensselaer Potter propôs a criação de uma espécie de ponte entre a área da ciência e a de humanidades, ponderando, sob a perspectiva da ética, sobre civilização humana, direitos individuais e dignidade da pessoa humana 1,2. Estas situações mudaram totalmente a dinâmica da relação médico-paciente, que atualmente se baseia no princípio da autonomia do paciente sobre seu corpo e sobre a decisão terapêutica. A partir disto, ganham prioridade nos procedimentos médicos a autodeterminação e o termo de consentimento livre e esclarecido, regido pela Resolução CNS 466/2012 3 . Socialmente, prega-se em todo o mundo o respeito às diferenças, principalmente contra a discriminação e a estigmatização, além da garantia dos direitos individuais 4 . No Brasil, esses direitos são ratificados pela Constituição Federal de 1988 5 , especialmente em seu artigo 5º. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura 6 (Unesco) publicou em 2006 a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, cujo texto foi aprovado unanimemente por seus 191 países-membros no dia 19 de outubro de 2005. Em seu artigo 11, a Declaração determina que nenhum indivíduo ou grupo deve ser discriminado ou estigmatizado por qualquer razão, o que constituiria violação à dignidade e aos direitos humanos, bem como às liberdades fundamentais 6 . Incluiu-se nesse documento, ainda, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos.

 Neste exemplar da Revista Bioética, podemos observar reflexões acerca das mudanças nos paradigmas sociais ao longo dos anos de forma a evitar a discriminação de determinados grupos, seja por razões étnicas, de gênero, de religião, por questões políticas ou de orientação sexual. Como exemplo, embora o homossexualismo tenha sido excluído da Classificação Internacional de Doenças pela Organização Mundial de Saúde 8 em meados dos anos 1990, ainda existem situações que devem sofrer mudanças no campo jurídico, cujo entendimento difere em muitos países 9,10. O difícil papel do médico ao comunicar más notícias aos pacientes em casos de malformações congênitas é igualmente abordado nesta edição. Parte da dificuldade discutida surge, por exemplo, da necessidade de o médico administrar as implicações éticas e jurídicas sobre a decisão final, que é fundamentalmente um direito da paciente. Os conceitos de eutanásia, distanásia e ortotanásia são também tema gerador de conflitos éticos na área assistencial. Isso porque a tecnologia na medicina cada vez mais permite prolongar a vida de forma artificial, sendo, no entanto, sempre questionável se a doença poderia ter seguido seu desfecho natural. Nesse contexto, a eutanásia é forma de abreviar a vida, e não é permitida no Brasil, assim como o suicídio assistido; na distanásia se utilizam todos os recursos possíveis para prolongar a vida, ainda que isso traga prejuízos ao paciente; e a ortotanásia é quando um indivíduo, em estado de doença terminal, busca recursos para abreviar seu sofrimento, evitando procedimentos que aviltem a dignidade humana apenas para prorrogar a vida . 

As diretivas antecipadas de vontade (DAV) no Brasil são manifestações do desejo do paciente quanto ao seu tratamento médico. Em 31 de agosto de 2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução 1.995/2012 12, em que o direito do paciente ou de seu representante legal de manifestar sua vontade sobre os tratamentos médicos é reconhecido 13. As DAV registram também a opinião do paciente quanto à doação de órgãos – ainda que a efetiva doação dependa da concordância familiar –, outra questão abordada nesta edição. No Brasil, este tema é regulamentado pela Lei 10.211/2001 14, pelo Decreto 9.175/2017 15 e pela Resolução CFM 2.173/2017 16, que estabelece critérios para o diagnóstico de morte encefálica. 

Em tempos de redes sociais e intensa comunicação entre as pessoas, as reflexões sobre a percepção dos estudantes de medicina acerca do sigilo médico são importantes e estão presentes no Código de Ética do Estudante de Medicina, lançado em 2018 pelo CFM 17. Neste número também são analisados os aspectos da judicialização da saúde no Brasil, especialmente no município de Ribeirão Preto/SP, a partir do direito à saúde, elencado no artigo 196 da Constituição Federal 5 como dever do Estado. Finalmente, são analisadas as práticas inclusivas para a pessoa com deficiência no sintagma identidade-metamorfose-emancipação. Boa leitura a todos, na certeza de que ao abordar estes temas se produzirão importantes insights no campo da bioética. 

Alguns artigos:

Comunicando más notícias sobre formações congêticas: reflexões bioéticas e jurídicas

Percepção de estudantes e médicos sobre autonomia na doação de órgãos

Avaliação do conhecimento de estudantes de medicina sobre sigilo médico

Percepção de profissionais da saúde sobre eutanásia

Disponível em: Revista Bioética 2020; 28 (1)